Este é um dualismo tranversal a toda a música que sempre me despertou muita curiosidade e que, creio, me vai suscitar sempre interrogações. Sobre o papel da poesia no que ao hip-hop diz respeito (uma velha questão, e que por isso mesmo despoletou comentários difusos), já por aqui escrevi. aliás, um texto. Aqui fica um excerto da entrevista com Manel Cruz (ex-Ornatos Violeta, Pluto, Supernada) ao Jornal Tribuna a propósito da questão. Para ler a entrevista completa (páginas 42 e 43), podem fazer o download do Tribuna em formato pdf aqui.
"Tribuna: Se a tua musicalidade se foi alterando ao longo dos teus projectos e das tuas diferentes bandas, liricamente há uma marca muito forte que não sofreu grandes alterações. Concordas com isto? Numa entrevista há tempos disseste que mudaste aquilo sobre que escrevias.
Manel Cruz: A parte do escrever acompanha-me sempre, é transversal. É uma parte mais existencial, contemplativa. Há mudanças que noto mais eu do que as outras pessoas e que nã se prendem apenas com aquilo sobre que escrevo, mas também com a forma, a plástica da letra, a maneira como parto para ela. Nos Ornatos, fazia melodias e depois escrevia, ajustando a melodia às letras e vice-versa. Era um processo que servia mesmo uma banda. Fazer as coisas de outra maneira pode ser, por exemplo, partires de uma letra e musicá-la, como pode ser, também, escrever alguma coisa que te vai na cabeça no momento, sem sentido aparente, e depois descobrires o sentido daquilo, ou então não, e deixares aquilo ser uma mera brincadeiras com palavras. É um lado mais experimental. Não digo que tenha perdido este lado. Gosto de escrever uma "canção" no sentido mais clássico do termo, mas sinto que também comecei a brincar um bocadinho mais e a não levar tanto a sério a questão da escrita. Brincar mais com as palavras.
TRIBUNA: Canções e poemas são diferentes? Ou é possível ler verdadeira poesia nas letras? É que isso acontece nas tuas...
Manel Cruz: Essa é uma questão fixe. Há um equívoco. Eu acho que os poemas já têm a música. A maneira como se organiza o poema na página, como preteres algumas palavras, uma pausa, um ponto, a métrica... tudo isso é já uma pauta para quem está a ler. Já estás a condicionar quem vai tocar. Quem toca dá ao poema a música que ele já sugere. Na canção, sem o suporte musical, a letra não tem estrutura para ser poema. Mas atenção, não estou a dizer que estas são as únicas hipóteses! Podes ter, de facto, canções que são poemas, e lê-los isoladamente e funcionar. O que digo é que se arrancarmos a letra à canção, isso não faz da letra necessariamente um poema. Para mim, um poema, ou o que se chama de poema, é algo que vive sozinho, para ser lido. Tive muitas propostas de editoras para editar as minhas letras como livros de poemas. Mas sempre que as isolava achava aquilo patético, não fazia sentido. Repetir os refrões, por exemplo, não fazia sentido. Quando se está a ouvir um CD e se está a ler as letras, estamos a ouvir música.
Há múltiplas maneiras de encarar as coisas. Normalmente, tenho um sentido que quero dar nas letras. Já me aconteceu querer dar esse sentido e certa palavra ser perfeita para colmatar um texto mas foneticamente não soar bem na música. Prefiro tirar sempre a palavra e deixar a música. A maneira como a música vai ser ouvida também conta para transmitires um sentimento. Uma palavra perfeita que soa mal pode não passar o sentimento, embora passe a palavra. É um jogo abstracto em que a preocupação no final é o que entra no ouvido. Depois do ouvido é que vai, então, à alma. Pelo menos eu sinto a coisa assim... Já se for um poema propriamente dito, aí é a palavra. A pessoa vai ler a palavra e depois "cantá-la" da maneira que quiser".
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(já não existe a ligação para a entrevista na íntegra ;_; Quanto não vale ter o jornal, o papel-objecto nas mãos, ir folheando, em vez de encontrar algo precioso pela internet mas já não estar disponível... o.o)
ResponderEliminarGosto muito deste tipo de entrevistas, sinceras, poéticas ♥ (: